A tela é dela: o cinema irreverente de Anna Muylaert
- UFUPIC
- 6 de nov. de 2018
- 4 min de leitura
06/11/2018 | 23:38
Por - Lorena Roje

É 1º de abril, e tudo é caos na cidade de São Paulo, porque o ano é 1964 e os militares se preparam para tomar o poder do governo no Brasil. É o dia da mentira, mas a verdade é cruel: instaura-se a Ditadura Militar com o golpe e o cenário não mudará até a derrubada do regime em março de 85. Vinte dias depois, nasce Anna Muylaert, no bairro de Alto Pinheiros.
Anna é uma menina privilegiada, nasce numa casa espaçosa com piscina e estuda em colégios de elite da zona oeste paulistana. Anna é filha de Roberto e Celina. Seu pai, é engenheiro e jornalista, e no ano que Anna nasce, ele começa a trabalhar nas revistas técnicas da Editora Abril. Sua mãe, dona de casa, é uma rata de biblioteca, e passa horas a fio nas suas leituras. Nesse mundo de muita erudição é que a bebê Anna virou criança e depois adolescente. Anna Muylaert cultivava uma grande afeição pelo cinema. Para a menina, filmar era eternizar momentos e personagens. Ela filmava e tirava fotos de seu avô, pensando que, como ele já era velho, poderia perdê-lo - por isso o capturava em sua câmera como uma forma de imortalizar o avô.
Com 13 anos, ela passa a frequentar o Cine Bijou, cinema alternativo onde estudantes, intelectuais, artistas e até mesmo militares de esquerda, em plena ditadura militar, assistiam filmes críticos, independentes e fora do circuito comercial. Na salas do chamado “Cinema da Arte”, Anna se deslumbra com seu primeiro amor no cinema, o filme Amarcord, do diretor italiano Fellini.
Seu contato com a produção cinematográfica foi com 15 anos, quando fez um curso para filmar na câmera super-8. Na altura dos seus 16 anos, ingressa na Escola de Comunicações e Artes da USP. Mas ela é muito nova, uma criança, e o campo audiovisual é um caminho penoso e exige maturidade. Ainda menina, em 1984 termina a faculdade e entra numa fase difícil, porque fazer cinema se mostra mais complicado do que ela poderia imaginar.

Sem desistir do sonho de cinema, Anna faz críticas de cinema na revista Istoé e no Estadão como freelancer. Tentando se descobrir, ela entra para a televisão como repórter do programa TV Mix. Anna faz amizade com Serginho Groisman que a convida para ser repórter e editora do programa Matéria Prima, na TV cultura. Anna fica só um ano trabalhando no programa, porque logo enjoa e quer dar lugar para uma de suas maiores vontades que envolve seu sonho: escrever roteiro de cinema. Então já é 1989, e ela, trocando ideia com o famoso cineasta e produtor Cao Hamburguer pelos corredores da TV Cultura, é convidada para participa do grupo de criação dos programas infantis de Hamburguer, Mundo da Lua e Castelo Rá-Tim-Bum.
Já no mundo do cinema, Anna começa a dirigir alguns curtas, como Rock Paulista e As Rosas não Calam, ambos em 1995. No ano seguinte, ela ganha destaque o curta de Comédia, A Origem dos Bebês Segundo Kiki Cavalcanti (1996).
O que um vendedor de discos, uma professora de violão, uma senhora da classe alta, uma empregada doméstica e um adolescente adotado tem em comum? Todos têm Anna Muylaert para representá-los em seus filmes. Esses personagens que apresentam uma microesfera da sociedade brasileira, vivem com seus rostos e simplicidade humana, histórias do mundo real.
Anna começa, então, sua produção de filmes em 2002, com Durval Discos. O filme conta a história de Durval, vendedor de discos de vinil que se recusa a fechar a loja mesmo com o acelerado avanço de CDs. O filme, que conseguiu apoio da TV Cultura e do Governo do estado de SP, foi indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e premiado pelo Festival de Gramado nas categorias Melhor Filme, Melhor Direção e Melhor Roteiro.
Em 2009, Anna lança seu segundo filme, É Proibido Fumar. No longa, Glória Pires representa Baby, professora de violão, que tenta largar o vício do cigarro quando se apaixona por seu novo vizinho, Max. O filme ganha importantes prêmios, como Melhor Direção e Melhor Roteiro Original pelo Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.
Em 2012, Muylaerte lança Chamada a Cobra, contando a história de Clarinha, uma senhora de classe alta de São Paulo, que atende um telefonema a cobrar e cai num golpe de falso sequestro.

É começo de 2015, e o mundo vive uma realidade caótica, de conflitos armados em terras sírias a surtos de Ebola nos países africanos. É também em 2015 que Muylaerte se embrenha mais no gosto do público geral, porque seu filme mais reconhecido e aclamado pela crítica, Que Horas Ela Volta? , é lançado nos primeiros meses do ano. Em dezembro, o longa é eleito um dos cinco melhores filmes estrangeiros do ano pela National Board of Review. No mesmo mês, é eleito o melhor filme do ano e entrou na lista dos 100 melhores filmes brasileiros segundo a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccin).
Anna pensava sobre e escrevia o roteiro Que Horas Ela Volta? já havia mais de 13 anos. O filme nasce como um filho, para sair em 2015 no mundo já crescido e com maturidade - e ela o cria com muito zelo, pensado e bem estruturado em cada nuance de sua narrativa.
Em 2016, no meio do ano, Anna lança Mãe Só Há Uma. O filme conta a história de Pierre, um adolescente em busca de sua identidade sexual, enquanto no pano de fundo sua vida vira de cabeça para baixo quando descobre a verdade sobre a mãe que o criou: não é a sua mãe biológica. O longa recebe o Prêmio Teddy no Festival de Berlim em fevereiro do mesmo ano.
Todos personagens dos filmes de Muylaerte, que podemos esbarrar facilmente nas ruas, nos dizem muito do cinema que a diretora faz. Para Anna, a essência do cinema é ser uma semente que desperta e planta sentimentos e idéias na cabeça do telespectador. Segundo a cineasta, o cinema precisa dizer muito do que vivemos, precisa falar sobre nós mesmos, e representar a realidade como ela é, trazendo também identidades plurais do país.
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